Crónica de Jorge C Ferreira
Deambulações
Há dias que são mais intensos. Dias em que as dores se sentem mais. Em que muitas coisas nos vêm à memória. Dias em que acordamos cansados, dias em que não nos apetece caminhar. Arrastamos os pés e andamos pouco. Escondemo-nos do sol. Ou será o sol que se esconde de nós? Esperamos que nos deixem ver a lua e as estrelas. A Cassiopeia, a Supernova, minhas namoradas tão antigas, meus amores de sempre. Será que vos verei ao perto, algum dia? Constelações do meu pensar. Minhas eternas interrogações. Desenhos da minha vida.
Meu primeiro berço, quantas saudades. Minha cama, minha almofada, meu travesseiro, meu lençol, minha coberta, minha manta, meu aconchego. Em tudo me enrolo. A almofada fala comigo e eu falo com ela, até que o sono se transforma em sonho e as conversas passam a ser outras. Esse mundo que não sabemos se é real ou irreal. Esse tempo, quem o comanda? Seremos nós? Não vos sei responder. Os sonhos, os pesadelos e o acordar fora de nós, sem nos reconhecermos. Por vezes, são instantes nublosos. Cortinas que nos tapam a vida. Ventanias que nos abanam o cérebro. Noites que não querem terminar. Quem somos?
Tempos que passam e por quem nós passamos. Madrugadas, esporádicas auroras, que lá para o norte do mundo são boreais. Um encantamento colorido. Falsas claridades. Simples manhãs por vezes escuras. A luz que se queria acesa para poder dormir. A criança assustada. O bem que lhe sabia o resto do sono na cama dos Pais. Um calor único que afastava todos os medos. Quase um canto à liberdade.
Minha rua, minha alegria. A mão da Avó a segurar as asas da alcova onde uma criança abria os olhos a quem era mostrado. O menino precisava de apanhar ar para ficar rosado. O banco verde de um jardim. As árvores que vão crescendo e um lago com patos e patinhos. A multiplicação da vida.
A mesa de todas as refeições, de todas as conversas e um rádio de todas as músicas. Vamos conversando entre a sopa e o conduto. Uma peça de fruta. Um café de cafeteira e o bagaço para os mais velhos. As histórias da vida. O escurecer de novo. As notícias contadas e as cantigas cantadas. Faltava uma cantiga. A tal, a que iria iniciar passado muitos anos outra vida.
As flores plantadas, as flores nascidas, as flores crescidas, as flores erguidas. Flores cuidadas. Flores de sempre. Flores para sempre. Uma flor no cabelo de uma mulher e um homem que arrisca a colocar uma na orelha. A liberdade encantada que queríamos ter.
Minha lua clandestina, naquela época em que não te vemos. Os teus quartos mentirosos. Lua cheia meu amor. Cheiras a beijos de plantas e especiarias. Tens uma guarda de honra de anjos e serafins que iluminas. Um torpor de orações em claustros e templos. Rezas, rosários e cruzes. Alguém que é crucificado e o missal da minha Mãe.
As imagens e as velas. Acreditar num milagre. Acreditar em tudo e em nada. As orações ensinadas em pequeno e esquecidas em determinada altura da vida. A rebeldia.
«Realmente tu, deste tanta volta à coisa, que fiquei baralhada.»
Fala da Isaurinda.
«Deambulações, é o título. É um errar pela vida e por algumas memórias.»
Respondo.
«Sim, sim, dá-me música. Sei bem dessas tuas conversas.»
De novo Isaurinda e vai, um ar de gozo.
Jorge C Ferreira Março/2024(430)
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Arrastam- se os pés, mas segue- se em frente, nunca se entregam os pontos pois há ainda aprendizagens que fazemos quando a pressa deixa de fazer sentido sobrepondo- se o vagar. Nunca se teve vagar para observar devagar, as belezas do mundo.
Desde as flores ao alcance do nosso olhar, até ao infinito de um céu estrelado, tudo é olhar, observar e recordar. Verbos de acção tão em contradição com o nosso vagar.
E aprendemos sempre. Até mesmo quando já arrastamos os pés….
Obrigado Lénea. Belo comentário. Devemos olhar com tempo e olhos bem abertos. Sabemos o que é ogual em todo o lado. Vamos em busca do diferente. Caminhar como pudermos. A minha gratidão. Abraço
deambulo por entre as tuas paisagens.
as dos ais e as que me levam longe, tão longe quanto a saudade.
fico ao lado teu nesse berço de algodão fino, na mão que é a da tua avó, no banco que é do jardim, nos passeios largos de entre as flores e as árvores que agitam os
braços ao sopro das brisas.
sigo até ao lar onde a família se encontra e.multiplicam conversas
enquanto é servida a refeição.
levo-me ao templo de murmúrios, credos, pias de água benta e missais
marcados por fitas de veludo e a tua mãe fitando uma imagem pesarosa em sofrimento…
e eis que me ofereces a lua.
e eu fico extasiada. minha irmã-lua.
a das várias faces.aquela em que
me revejo.
e no fim desta jornada vou pela
rua e avisto cravos.erguidos
ouço clamores, um povo desperto
num abril renovado na aurora
de uma tão esperada liberdade.
deambulo por entre as tuas paisagens e sei de ti o melhor.
o poema. a nostalgia. o canto
único de ser livre. a verdade!
Obrigado Mena. Lindo Poema como sempre. As palavras que te saltam do corpo inteiro. Uma vida toda escrita com uma vertigem que empolga. Sempre muito grato por estares aqui. Abraço grande
Um texto de encanto, pela beleza que pôs em cada palavra.
Deambulou, pelas fases mais belas da vida.
Deliciosos foram os momentos que passamos na caminha dos nossos pais. Nem precisávamos de luz. Tão bela a segurança, da mão da avó. Tanta é a ternura que vou lendo.
As flores, ficam bem em qualquer lugar. Como embeleza o cabelo de uma mulher!
Estou encantada, com a beleza deste suave e belo texto.
Vou pedir á lua e ás estrelas, que brilhem para si, meu poeta, só elas o podem iluminar como merece.
Abraço grande.
Obrigado Maria Luiza, tão terno e doce o seu comentário. Há momentos que vivem em nós para sempre. Coisas que apesar do tempo passado, guardamos na memória. Impossível esquecer. A minha enorme gratidão. Abraço grande.
Maravilhosa esta crónica. Deambulações carregadas de saudade. Memórias que chegam de mansinho, nas noites infindáveis. Passos arrastados, olhar atento, a deambular pela vida. Devaneios, sonhos, perguntas. Tanta memória. Imagens que parecem esquecidas no tempo. Tão presentes, que chegam a ser palpáveis.
Tanta coisa a acontecer. Tanta ilusão e desilusão. Vamos caminhando em busca de respostas.
Obrigada Amigo pela excelência da sua escrita.
Um abraço.
Obrigado Eulália. Belo o seu comentário. Deambular pelos caminhos da memória. Memória que, por vezes, teima em nos tramar. A mesma memória que, por norma, nos recorda os momentos marcantes. Caminhemos. Abraço forte
Gostei imenso da crónica, de enorme riqueza poética.
Deambulações pelo passado, pelo presente e a eterna questão de quem somos.
Sonhos, muitos.
O querer entender e alcançar para além da lua e das estrelas, o infinito. O poder do cosmos, tantas galáxias.
A vontade de saber, de penetrar no invisível, a eterna curiosidade.
Soube tão bem ler! Obrigada.
Abraço
Obrigado Fernanda. Tão bom ler o seu comentário. Essa busca de que fala é uma coisa que procuro desde muito jovem. Muitos me diziam para não pensar nessas coisas. Não conseguia. Um mistério que me continua a perseguir. Nunca desistir. A minha gratidão. Abraço grande.
Amei a tua crónica querido Poeta Jorge C Ferreira! Senti-me deambular na tua poesia. Para dormir a companhia da luz acesa…Obrigada
Obrigado Claudina. Como é reconfortante a tua presença neste espaço. Minha Amiga de há muito tempo e para sempre. Há sempre uma luz que buscamos. A minha gratidão. Abraço grande.
Deambulações de um crescer e/ou viver bem “gravado” na memória dos calendários.
Perfeito recordar, de tempos e momentos onde olhaste o infinito dos espaços vividos.
Permite-me um comentar sincero, alusivo aos teus “contagiantes” traços onde abres livros com décadas e mostras páginas do teu olhar.
Perfeito, diz o meu sentir … único, destaco numa análise sem enredos mas plena de luas criativas e sonhadoras, onde te inspiraste.
Poemas, direi num constante abrir do teu diário, e sonhos do ontem … quem sabe vividos no hoje quando escreves a palavra SAUDADE!
Grato estimado amigo!
Obrigado José Luís. Meu Amigo Poeta. Uma grande alegria, ler-te aqui de novo. A memória é tramada e a saudade dói. Caminhanos como podemos. Vemos o que nos interessa ver. Por vezes somos poema andante. A minha imensa gratidão. Abraço grande.
Li e ficou -me a alma também nessa inquietação que trazem os poetas e se agudiza com o passar dos tempos…num tempo que não sei sequer se existe ou é só uma ilusão dos dias e noites que se vão de nós…
Ah, o que é feito do tempo em que a criança nem tinha televisão e se assustava quando o telefone tocava, no medo do desconhecido que chegava de longe!?
Revi cada ideia, cada lembrança, cada tempo de mim, de nós, que somos os cansados de hoje.
Abraço e obrigada…
Maria Clara
Obrigado Maria Clara. Excelente o seu comentário. Como é gratificante ter a sua presença neste espaço. É o inexplicável. O não saber, o nunca saber, o que é real ou irreal. Afinal o que é a vida? A minha imensa gratidão. Abraço enorme
As tuas deambulações são um convite ao sonho e à utopia. Longas caminhadas pelas memórias que guardamos sem saber. Devaneios sobre o mar e a lua. Viagens reais e imaginadas sem destino. São cores e campos de flores. São poemas!
Obrigado Maria. Lindo o que escreveste. Quem somos nós além daquilo que recordamos. Somos a memória que ficou após tudo o que esquecemos. Somos o caminho eo que vimos. O resto é o que não sabemos. O inexplicável. A minha gratidão. Abraço enorme.